Controvérsia:
1 — Parece que Deus criou o mal, pois se só Deus é força motora da criação, conclui-se que o mal não existiria se Deus não o tivesse criado: “O Eterno TUDO CRIOU sem exceção.” (Eclesiástico 18, 1)
2 — Além disso, as Escrituras sugerem Deus como sendo o criador do mal: “Faço a paz, e CRIO O MAL. Eu, o Senhor, FAÇO TODAS AS COISAS.” (Isaías 45, 7), tendo endurecido o coração do Faraó, fazendo-o manter cativos os israelitas no Egito: “O Senhor ENDURECEU O CORAÇÃO DO FARAÓ." (Êxodo 9, 12)
3 — No mais, se só a Deus cabe a misericórdia e o castigo; e se a misericórdia é o bem dado a uns; supõe-se que o castigo seja o mal infligido a outros.
4 — Soma-se, que na aparência de serpente e da árvore do fruto envenenado, o mal se fazia presente no Éden junto com Deus, os seres humanos e todas as coisas criadas.
Oposição:
MAS EM CONTRÁRIO, “(…) DEUS CONTEMPLOU TODA SUA OBRA, E VIU QUE TUDO ERA MUITO BOM.” (Gênesis 1. 31)
Esclarecimento:
Se sabemos e cremos que Deus é sempre bom e justo — e não nos é permitido pensar diferente — temos que acreditar que Deus não quer, não faz, não cria e não tenta o ser humano para o mal. Todavia, o mal não existiria se não fosse causado, sendo certo que de modo algum é Deus o seu causador, pois a essência Divina é Bondade e Justiça, que com o mal não se concilia. O mal não é algo que possa existir por si só, enquanto substância autônoma, pois é sempre derivado de outra coisa que é o BEM FALHO, o qual não atingiu o fim útil que dele se esperava, não produziu os frutos que o tornaria perfeito. Como toda célula cancerígena é resultado da degeneração de uma célula saudável, o mal é a degeneração dos bens úteis a vida. E, sendo agente degenerativo, o mal só pôde existir a partir do bem preexistente: “(…) O MAL SÓ PÔDE EXISTIR NO UNIVERSO PORQUE ANTERIORMENTE HAVIA O BEM, EMBORA SEJA CERTO QUE O AUTENTICO BEM NÃO PRODUZA O MAL.” (Cap. 04 De Div. Nom. lect. 16. São Dionísio, o areopagita. Obra Pseudo-Dionísio)
Mas o que faria com que algo bom se degenerasse, produzindo o mal e os seus malefícios? A resposta pode ser encontrada na vontade humana, quando, escolhendo afastar-se de Deus, colocou-se livremente acima deste, corrompendo primeiro a si própria, e depois tudo a partir dela: “PONHO DIANTE DE TI A VIDA E A MORTE, a bênção e a maldição. ESCOLHE POIS, A VIDA, para que vivas com a tua posteridade, (Deuteronômio 30, 19)” — “É próprio da vontade ESCOLHER o que cada um pode optar e abraçar. E NADA, A NÃO SER A VONTADE, PODERÁ DESTRONAR A ALMA DAS ALTURAS ONDE ELA DOMINA, E AFASTÁ-LA DO CAMINHO DA RETIDÃO.” (AGOSTINHO. SANTO. O Livre Arbítrio e a Origem do Mal. par. 34, cap. 56, p. 67) — “O ATO DA VONTADE DE AFASTAR-SE DE DEUS, CONSTITUI SEM DÚVIDA, O PECADO. PODEREMOS ASSIM DESIGNAR A DEUS COMO AUTOR DO PECADO? NÃO! ESSE MOVIMENTO NÃO VEM DE DEUS.” (AGOSTINHO. SANTO. O Livre Arbítrio e a Origem do Mal. par. 54, cap. 20, p. 142/3)
A inteligência, por exemplo, nos é dada para nos levar a conhecer e corresponder ao Amor de Deus, podendo se tornar má naquilo em que escolhemos utilizá-la. O mal está nos bens deformados, corrompidos e desordenados pela vontade livre, que deles se serviu sem considerar a vontade Divina. Nenhum ato é benigno quando não tem Deus como fim principal. Combater o mal é reorganizar o bem, realinhando-o à vontade Divina, que é a única coisa justa, perfeita e boa no universo, na qual tudo se torna bom, justo e perfeito por participação. Maligno é todo bem subjugado pela vontade sem equilíbrio ou controle ou, ainda, a aversão ao bem como ele realmente é em sua perfeição; aversão que tem como causa o ato da vontade livre, unicamente, pois “(…) TUDO O QUE DEUS CRIOU É BOM E NADA HÁ DE REPROVÁVEL, QUANDO SE USA COM AÇÃO DE GRAÇAS.” (1 Timóteo 4. 4), no que, então, solucionamos a controvérsia.
Solução:
1 — R: Deus não é autor do mal, mas da liberdade que é um bem, pois se não houvesse liberdade, seríamos incapazes de corresponder ao seu Amor, pois ninguém ama, senão, quando escolhe amar, pois o amor não nasce da coação, nem se impõe como obrigação. Mas quando escolhemos unicamente a satisfação dos nossos desejos a qualquer custo, não enxergamos mais beleza nos bens que nos atraem a Deus, fazendo da nossa vontade livre algo autodestrutivo, pois,: ‘(…) SE É VERDADE QUE O HOMEM NÃO PODERIA AGIR BEM, SENÃO QUERENDO, SERIA PRECISO QUE DESFRUTASSE DE VONTADE LIVRE, SEM A QUAL NÃO PODERIA PROCEDER DESSA MANEIRA. NÃO É PELO FATO DE UMA PESSOA PODER SE SERVIR DA VONTADE TAMBÉM PARA PECAR, QUE É PRECISO SUPOR QUE DEUS A TENHA CONCEDIDO NESSA INTENÇÃO. (AGOSTINHO. SANTO. O Livre Arbítrio e a Origem do Mal. par. 3, cap. 01, p. 44) Todo mal procede de um bem corrompido, cuja corrupção tem como causa a liberdade que rejeita Deus: “(…) NINGUÉM TERÁ DEUS EM ALTO CONCEITO, SENÃO QUANDO CRER QUE NELE NÃO HAJA MUDANÇA, NAQUILO QUE REALMENTE É, E PELO QUAL GOVERNA TODAS AS COISAS COM PERFEIÇÃO E JUSTIÇA. (AGOSTINHO. SANTO. O Livre Arbítrio e a Origem do Mal. par. 5, cap. II, p. 29), “DEUS É AMOR” (1 Jo 4. 8) E, como disse de Si mesmo: “EU SOU O QUE SOU, NÃO MUDO.” (Malaquias 3. 6)”
2 — R: Deus não permanece junto daqueles que o rejeitam, porque Deus é amor, e amor se alimenta da reciprocidade: “PERMANECEI EM MIM E EU PERMANECEREI EM VÓS.' (Jo 15. 4)” Quando o Faraó, por ato livre, repudiou Deus, este se afastou dele, e nisso, o coração do governante egípcio endureceu, tornou-se insensível ao sofrimento do povo cativo que escravizava, negando-lhes a liberdade: “O faraó respondeu: — 'QUEM É ESSE SENHOR, PARA QUE EU LHE DEVA OBEDECER, DEIXANDO PARTIR ISRAEL? NÃO CONHEÇO ESSE SENHOR, E NÃO DEIXAREI PARTIR ISRAEL.' (Êxodo 5, 2)” A causa do endurecimento do coração do faraó estava na escolha em recusar Deus, fazendo com que Deus o abandonasse, gerando o mal que sobre ele se abateu: “O ATO DA VONTADE AFASTAR-SE DE DEUS, CONSTITUI SEM DÚVIDA O PECADO. Poderemos assim designar a Deus como autor do pecado? Não! EM TODAS AS COISAS NAS QUAIS NOTARES QUE HÁ MEDIDA, NÚMERO E ORDEM, NÃO HESITES ATRIBUÍ-LAS A DEUS. ONDE HÁ ESSES TRÊS ELEMENTOS, EXISTE A PERFEIÇÃO PLENAMENTE REALIZADA.” (AGOSTINHO. SANTO. O Livre Arbítrio e a Origem do Mal. par. 54, Cap. 20, p. 142)
Por isso, o texto em Isaías (45. 7), não comporta interpretação literal, sendo metonímia, ou seja, quando uma palavra é usada para retratar algo que parece que é, mesmo não sendo, para melhor compreensão do leitor. E assim se diz que Deus “cria” o mal para explicar as consequências de quando os indivíduos se afastam de Deus, pois todo afastamento de Deus cria o mal. Contudo, esse movimento primeiro em se afastar não se dá pela ação Divina, mas pela vontade e ação humana que, como na parábola do filho pródigo, quis viver à própria sorte: “DEUS CRIOU O HOMEM, E O ENTREGOU A SEU PRÓPRIO JUÍZO. (Eclesiástico 15. 14)”
3 — Toda desigualdade há ser corrigida por justiça, sendo a justiça, em todas as suas consequências necessárias, um bem, posto que não punir a maldade; e não recompensar a bondade, ou recompensá-las do mesmo modo, se estaria praticando um mal chamado injustiça.
4 — A natureza angelical enquanto obra Divina é um bem, e os anjos mesmo infratores não a perdem. E sendo pura inteligência espiritual, também os anjos foram criados com liberdade pelas mesmas razões pelas quais Deus nos criou livres, com direito de escolha entreservir a Deus, (o que lhes conservaria o estado de bondade e perfeição); ou a si próprios, seguindo seus próprios desejos e apetites, (o que lhes degeneraria a natureza angelical). A árvore do conhecimento do bem e do mal simbolizava essa liberdade, e a humanidade tomou do seu fruto antes do tempo, antes de estar preparado para fazer bom uso dessa liberdade, fazendo com que esta se corrompesse. Portanto, estavam no paraíso os bens da natureza angelical, no anjo, mesmo agindo como serpente; e da liberdade, na figura do fruto da árvore da ciência do bem e do mal.